Num país pressionado pelo agronegócio, produtores que respeitam natureza mostram força, conquistam políticas públicas e se dizem preparados para transformar produção de alimentos.
“Nunca vamos mudar as coisas por pura luta contra a realidade. Para mudar algo, temos que construir um novo modelo sobre algo existente”. (Stephen Gliessman citando o escritor Richard Buckminster Fuller)Crianças de mãos dadas com seus pais, idosos, indígenas, grupos de pessoas calçando chinelos e vestidas de forma simples. Não, não estamos observando a circulação de pessoas em algum parque, praça ou feira, mas sim no centro de eventos da PUC do Rio Grande do Sul. Esse não costuma ser o público usual de ambientes universitários, mas estamos falando de um evento científico e também político: o VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia, realizado de 25 a 28 de novembro de 2013, em Porto Alegre, promovido pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), com organização e patrocínio de várias entidades e órgãos estatais.
Após dez anos, o principal evento de agroecologia do país voltou à cidade onde nasceu, em 2003. Cerca de 4.300 pessoas participaram, entre apresentadores de comunicações e pôsteres, palestrantes nacionais e internacionais, agricultores, estudantes e público em geral. Além das atividades acadêmicas houve oficinas, ações culturais, feira de produtos orgânicos e de artesanato, troca de sementes crioulas e debates paralelos.
O VIII Congresso de Agroecologia debateu, entre outros assunto (que podem ser conferidos aqui), a construção de políticas públicas para a agricultura orgânica no Brasil. O principal instrumento dessa política, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), foi apresentado pelo representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) Valter Bianchini. Lembrando os esforços dos pioneiros da agroecologia no Brasil – Ana Primavesi, José Lutzenberger e Sebastião Pinheiro –, Bianchini avaliou o plano como o ápice de uma evolução de mais de quarenta anos de lutas pela agroecologia no Brasil. É a primeira vez que o Estado brasileiro constrói um plano para desenvolvimento da área e direciona uma soma tão significativa de recursos: 8,8 bilhões de reais. Segundo o professor e pesquisador Miguel Altieri, é o primeiro plano governamental de agroecologia do mundo.
Paulo Petersen, presidente da ABA, mencionou que a presidenta Dilma convidou entidades e movimentos interessados a participar, por meio de vários seminários, da construção do plano. Essa participação na construção de uma política pública para a agroecologia é fato inédito no país. Nem todas as sugestões e propostas foram incorporadas, porém houve participação e luta até o último minuto, garantiu Petersen.
No entanto, os palestrantes mostraram grande preocupação com o paralelo avanço do agronegócio e as marcantes contradições dentro do governo. A professora Claudia Schmitt (UFRRJ) destacou o movimento em curso no Congresso Nacional com o objetivo de flexibilizar marcos regulatórios importantes (Código de Mineração, leis de demarcação de terras indígenas, Código Florestal, entre outros) para facilitar a ampliação de negócios no espaço rural.
Petersen afirmou que é preciso entender a economia do agronegócio para melhor combatê-la. Ela é altamente dependente de crédito bancário, infraestrutura (estradas, hidrelétricas etc), de insumos mecanizados e agrotóxicos, da mídia (que, em geral, defende uma falsa eficiência produtiva do agronegócio), e da bancada ruralista para aprovar legislação a seu favor. Nesse contexto, a margem de novas alternativas a esse modelo é reduzida, em nome da governabilidade. O governo, muitas vezes, fica refém dos interesses do agronegócio.
Além disso, há contradições presentes dentro dos órgãos do governo, como foi observado pelo governador Tarso Genro, em seu discurso na abertura do Congresso. Segundo ele, a ambiguidade presente no fato de que o Ministério da Agricultura seja o ministério do agronegócio e o Ministério do Desenvolvimento Agrário defenda a agricultura familiar e sustentável reflete na estrutura estatal a disputa pela hegemonia, a ser cristalizada com políticas e programas públicos. O governador afirmou que o ideal seria, a longo prazo, que tivéssemos apenas um ministério, o da Agricultura e da Sustentabilidade, para que esse jogo de ambiguidades fosse superado e se fundisse numa visão que não é só de agricultura, é uma visão de mundo e de humanidade.
Outro aspecto preocupante da questão é a cooptação do meio acadêmico, considerado por Petersen um “autismo científico”. Muitos pesquisadores agem como se o agrobusiness fosse um caminho único e inexorável. Nesse sentido, é preciso rever o papel do mundo acadêmico, da ciência perante a sociedade. O Congresso Brasileiro de Agroecologia coloca-se como alternativa acadêmica a essa visão hegemônica dentro das universidades. O número de trabalhos apresentados mostra a pujança científica crescente da área: 1.055 apresentações, entre palestras, comunicações, relatos de experiência e pôsteres.
Diante desse quadro, a agroecologia se firma ainda mais como movimento de reação, avançando “pouco a pouco”, segundo Petersen: “o governo tem mostrado predisposição ao diálogo democrático e isso deve ser valorizado”. Ele observou que as entidades e movimentos devem seguir seu trabalho, aproveitando o momento favorável em políticas públicas, e apresentar bons projetos para receber os recursos disponíveis; e reforçou o papel da Embrapa, Universidades e Emater para que o plano de fato aconteça: “Os desafios permanecem e é preciso seguir lutando”.
Havia um clima de consenso de que a agricultura ocupa o centro da crise planetária – e seu papel pode ser de algoz ou de cuidadora do mundo. A revolução verde e o agronegócio vêm causando poluição dos solos, água e ar, além de doenças e morte de humanos e animais. Por outro lado, a vertente da agroecologia, ao cuidar e respeitar os ritmos da natureza, oferece uma alternativa de saúde e real desenvolvimento à humanidade.
As soluções oferecidas até o momento têm sido “mais do mesmo”: resolver os problemas causados pela tecnologia com mais tecnologia – o exemplo mor representado pelos transgênicos. Para resolver a resistência ao herbicida Glifosato, está prevista a aprovação de “novas” sementes de milho e soja resistentes a um herbicida ainda mais danoso, o 2,4-D, componente do Agente Laranja.
O momento, portanto, é ao mesmo tempo de comemorar e continuar lutando para superar grandes desafios. Os avanços obtidos devem ser celebrados: segundo Petersen, existem atualmente no Brasil 250 grupos de pesquisa e mais de 100 cursos de agroecologia nas universidades. Apesar de o paradigma convencional pautado pela tecnociência ainda ser dominante, é possível observar um crescente interesse dos pesquisadores pelo paradigma que tenta produzir cuidando da natureza, não lutando contra sua biodiversidade.
Também o número de propriedades vem aumentando. Segundo dados do IBGE, havia em todo o Brasil, em 2006, 90 mil propriedades orgânicas; destas, 11 mil com certificação. A meta do MDA é chegar a 50 mil certificadas até 2015. É visível o aumento do número de agricultores interessados em trocar de modelo, muitas vezes devido a intoxicações ou mortes na família provocadas pelos agrotóxicos.
A agroecologia como teoria crítica tem condições de diagnosticar as raízes da crise e apontar soluções. Para o palestrante final do evento, referência internacional no tema, professor Stephen Gliessman, da Universidade da Califórnia-Santa Cruz, a agroecologia “é a alternativa ao mercado mundial” e, ao mesmo tempo, caminho para “a transformação ética, moral, social e de valores”. Ele destacou o papel das redes e movimentos sociais alternativos para mudar a estrutura do mercado. É preciso conectar produtores e consumidores, através de mercados locais, e convencer mais e mais agricultores a passarem pelos três estágios de mudança da agricultura convencional para a que preza a ecologia: conversão, transição e transformação.
Gliessman enfatizou também a importância da investigação científica em parceria com os agricultores, o que ele chamou de “ação participativa”, uma real “educação para a sustentabilidade”, que pode ser aplicada nas escolas de agronomia de todo o mundo. E, o mais interessante, esse eminente pesquisador reconhece que agroecologia não é só conhecimento acadêmico. Em sua opinião, “agroecologia é ciência, prática e movimento social”.
Os ventos nunca sopraram tão a favor da agroecologia, mesmo que passem também por um mar de transgênicos e de agrotóxicos… É preciso fazer o Planapo acontecer no dia a dia das propriedades e continuar pressionando os governos por maiores recursos financeiros e corpo técnico capacitado para orientar os agricultores, tanto na transição como na continuidade de suas lavouras ecológicas.
A técnica nem sempre é má, como defendeu José Lutzenberger, um dos maiores batalhadores pela agricultura de base ecológica no Brasil e no exterior. Existem técnicas “do bem”, e a agroecologia é uma delas; ela pode ser “o caminho suave”, como dizia Lutz, que pode cuidar da saúde do planeta e, por consequência, de todos nós.
* Elenita Malta Pereira é historiadora, doutoranda em História na UFRGS e autora do blog A voz da primavera.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.
(Outras Palavras)