IEB promove Seminário para propor agenda mínima aos governos federal e estaduais.
Mais de 40 organizações não governamentais e instituições comunitárias subscreveram na última semana de novembro a Carta de Brasília (*), elaborada durante o Seminário “Repactuação da Agenda do Manejo Florestal Comunitário e Familiar (MFCF) na Amazônia”, organizado pelo IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil. O documento manifesta preocupação com a “baixa efetividade” das ações previstas no Programa Federal de Manejo Florestal Comunitário e Familiar, regulamentado em 2009, “em que pese sua importância para o combate ao desmatamento e a inclusão social”. Ao propor a retomada do diálogo com os governos federal e estaduais da região, a Carta apresenta uma agenda mínima para acelerar os processos de regularização fundiária, licenciamento ambiental e aprovação dos Planos de Manejo das florestas habitadas por agricultores familiares, assentados da reforma agrária, comunidades e povos tradicionais.
“Nós estamos aqui tratando de uma agenda reprimida” – definiu o coordenador regional do IEB Belém, Manuel Amaral, ao fornecer um diagnóstico do problema. “As formulações de documentos em torno de uma política para o Manejo Florestal Comunitário têm mais de dez anos e nada aconteceu. Mas se a gente debater em profundidade, vamos ver também que não existe formalmente uma legislação florestal brasileira.” Além disso, afirmou que “temos estruturas governamentais frágeis, desarticuladas e com pouca capacidade de lidar com essas questões”.
“Nós todos precisamos da floresta em pé! E quem está defendendo a floresta somos nós que vivemos lá” – alertou Silvério Maciel, da Apadrit – Associação dos Produtores Agroextrativistas da Assembleia de Deus do Rio Ituxi (AM), na apresentação da agenda mínima aos representantes do governo convidados a dialogar no Seminário com lideranças das organizações da sociedade civil. “Foram quase dez anos de lutas para conseguir o plano de manejo do Ituxi. Queremos hoje que o governo saia daqui consciente: é o Plano de Manejo Comunitário que ajuda na renda das famílias. Se nós não estamos tirando [a madeira], outros estão por trás derrubando, acabando com a mata.”
Um dos temas mais aflitivos para as comunidades extrativistas é justamente a vulnerabilidade, principalmente das lideranças, diante da truculência dos madeireiros que operam o desmatamento ilegal. Este foi um dos cinco pontos definidos durante o Seminário para integrar a agenda mínima que demanda ações das agências governamentais até o final do primeiro semestre de 2015.
Agenda Mínima do MFCF
- Aprovação de no mínimo 20% de todos os Planos de Manejo Florestal Comunitário e Familiar protocolados nos órgãos ambientais federais e estaduais;
- Consolidação imediata dos instrumentos de gestão das Unidades de Conservação, como, por exemplo, a revisão do Plano de Manejo da Floresta Nacional do Tapajós;
- Lançamento de Editais de ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural, com foco na capacitação, fortalecimento institucional e comercialização, em prazos compatíveis;
- Lançamento de Edital do Fundo Amazônia, específico para o MFCF;
- Promover ações de fiscalização em áreas de ocorrência de desmatamento, exploração ilegal e conflitos envolvendo lideranças.
Esforço marginal
A meta de aprovação dos 20% dos planos de manejo em tramitação nos governos federal e estaduais não surpreendeu. “Nós temos capacidade técnica e operacional para fazer mais e de forma mais ágil” – admitiu no evento Roberto Vizentin, presidente do ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, responsável pela avaliação e aprovação dos Planos de Manejo nas Unidades de Conservação federais. “Se os guardiões da natureza continuarem nessas condições materiais precárias, nós estaremos fracassando realmente. A escala e o esforço que nós estamos fazendo é marginal, é periférico.”
Vizentin se comprometeu a encaminhar o atendimento às reivindicações e, até o final do atual mandato do governo, “fazer toda ação política para dar esse salto na relação” com os atores ligados ao MFCF, como demanda a Carta de Brasília (*).
Pressão social
A gerente de Florestas Comunitárias do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Elisângela Sanches, saudou a realização do Seminário como instrumento de “pressão social”, que considera importante “fator de influência da vontade política” para implementação do Programa Federal de MFCF – que tem gestão compartilhada entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério do Desenvolvimento Agrário. E apontou a possibilidade efetiva de “reativar antes de fevereiro”, no âmbito do Programa, o GT – Grupo de Trabalho do Manejo Florestal Comunitário, que se reuniu pela última vez em abril de 2011, com representação de órgãos do governo federal e de entidades da sociedade civil. “O novo Código Florestal tem várias agendas que precisam ser regulamentadas, como por exemplo o licenciamento simplificado, a comercialização dos produtos não madeireiros, a obrigatoriedade de fomento do manejo” – explicou a gerente do SFB, agência vinculada ao MMA que tem a função executiva do Programa Federal.
Elisângela reconheceu que “hoje o governo realmente tem dificuldade para implementar o Manejo”, mas disse acreditar que “o GT pode iniciar essa discussão e depois avançar em outras pautas de fomento, como elaborar projetos e resolver questões técnicas com os Estados”. A convocação do GT, segundo ela, seria ideal para “começar a nova gestão [do governo federal] com algumas dessas questões já discutidas, tendo preparada uma redação para os decretos regulamentadores”. Quanto às condições para essa convocação, disse que dificilmente poderá ocorrer antes do final do ano “porque depende de recursos escassos neste período para reunir os integrantes” em Brasília.
Apesar das alegadas dificuldades do governo, a possibilidade de atendimento da agenda mínima entusiasmou as lideranças comunitárias. “Em fevereiro já vamos ter todos os novos [executivos de alto escalão nos órgãos do governo] empossados, então já vai estar na mesa deles uma missão, que é essa demanda de aprovar 20% dos planos de manejo no primeiro semestre” – simplificou Maria Margarida Ribeiro da Silva, líder da Associação Comunitária de Arimum (PA).
Rito especial
O secretário-adjunto do Meio Ambiente do Pará, Hildemberg da Silva Cruz, afirmou que é possível cumprir a meta proposta para liberação dos planos de manejo ainda no atual mandato do governo estadual (que foi reeleito): “Esse quórum de 20% a gente assume aqui de fato, mesmo. Só vamos fazer um diagnóstico da situação atual dos planos e a partir daí verificar o que é preciso fazer para dar celeridade às análises e ajustes de pendências pelos proponentes. Talvez seja o momento de criar um rito especial lá, um corpo técnico específico para cuidar desse processo”. Defendeu ainda a formação de um grupo, com representação das comunidades, para discutir o licenciamento simplificado, a fim de acelerar os processos, assim como para definir regras para as relações entre empresas compradoras da produção e as comunidades extrativistas.
O secretário paraense abordou também a questão do licenciamento ambiental dos assentamentos da reforma agrária. E propôs incluir na “agenda do Fundo Amazônia, que tem recursos pra isso, identificar os assentamentos que existem no Estado e fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR) das áreas coletivas e individuais”, para facilitar a tramitação caso haja vinculação com o CAR no processo de licenciamento.
Coordenador da Divisão de Recursos Naturais do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Silvio de Menezes, confirmou que ainda existem pendências quanto à necessidade de licenciamento ambiental nos assentamentos da reforma agrária, mas disse que “a obrigatoriedade já não se faz presente”. Dispensado esse trâmite, segundo ele, o Incra tem concentrado esforços na execução de outras tarefas, como por exemplo preparar a primeira chamada pública para implantação de manejo florestal comunitário no assentamento Maracá, no Amapá. Mencionou também, entre outras ações na Amazônia, parceria com a Universidade Federal do Pará com o objetivo de desenhar a aplicação do MFC nas áreas de assentamento do município de Anapu.
“A gente tem de ter uma dinâmica pra aprofundar essas questões no dia-a-dia” – sugeriu o diretor de Relações Socioambientais e Consolidação Territorial do ICMBio, João Arnaldo Novaes, ao informar que se estuda “uma proposta de constituir um comitê técnico de apoio ao MFCF, com representação das ONGs, do movimento extrativista e das instituições governamentais, para avançar na superação dos problemas”.
As perspectivas apresentadas pelos representantes do governo federal não amenizaram, porém, a impressão de que “às questões complexas, como a expectativa dos povos da floresta de viver a experiência do manejo comunitário, o governo responde com informes de atividades e se colocando à disposição, como vimos aqui, sem avanços efetivos”, na avaliação de Claudia Pojo, representante no Seminário da ONG Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social Educacional.
“Pra avançar nessa política, o governo tem de chamar para si a responsabilidade” – concordou Manuel Cunha, diretor do Conselho Nacional dos Seringueiros. “Precisamos mexer em procedimento, em norma. É o governo que tem o poder pra mexer nisso, pra deixar as coisas mais fáceis; e aqui não sinalizou isso, não!”
Fraudes na extração
A demanda por facilitação dos processos de licenciamento e integração ao mercado do MFCF é do interesse não apenas das comunidades extrativistas, pois atende também à necessidade de integral legalização do comércio de recursos naturais, a fim de assegurar a conservação da floresta sem desperdiçar os potenciais econômicos da Amazônia. É consequência da incapacidade dos governos de coibir as fraudes que “travestem a madeira extraída de maneira totalmente ilegal em madeira legal”, conforme acusou Paulo Amaral, pesquisador sênior do Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. “Se as florestas que estão sob proteção das comunidades não entrarem no jogo, esse problema não se resolve, porque o setor privado não tem florestas suficientes para abastecer o mercado.” Na opinião dele, “existe só um caminho pra se ter produção sustentável da madeira na Amazônia: é a habilitação das florestas que estão na mão das comunidades para torná-las capazes de fazer projetos, executar os projetos e acessar o mercado, que precisa ser desenvolvido e ganhar escala”.
A estruturação desse mercado legalizado figura entre as preocupações do governo federal, diz o diretor do ICMBio João Novaes, que identifica três gargalos nessa direção. “Um desafio é trabalhar uma política de preços mínimos pra madeira, como existe para o óleo de babaçu, a castanha, boa parte dos produtos da biodiversidade. Mas o que está relacionado com a maior ameaça sobre a Amazônia, que é o desmatamento, nós não temos. E muito menos para as comunidades tradicionais, grupo mais frágil da cadeia de extração da madeira.” Ele defende, por exemplo, que se defina prioridades com incentivo para compra de madeira oriunda de MFCF nas licitações governamentais. O segundo ponto seria desenvolver um mecanismo para que uma instituição como a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento, estatal) compre essa madeira por um preço mínimo, “o que na prática significaria a libertação do madeireiro ilegal, que tende a usar o plano de manejo comunitário pra legalizar o desmatamento ilegal”. O terceiro ponto, estabelecer “um canal de articulação com o comprador final, como as construtoras e outras empresas dos grandes centros, que mesmo tendo interesse não têm meios de acessar as comunidades extrativistas”.
O diretor do ICMBio questiona o balizamento dos estudos de viabilidade econômica dos projetos de MFCF pelos parâmetros das grandes concessões florestais, que acabam atraindo o apoio financeiro do próprio governo. “E, aí, a comunidade acaba vendendo a madeira por 50 reais, quando poderia ser 500, 800” – lamenta. Para ele, “o MFCF não consegue dar conta da oferta de madeira, mas resolve o problema da ocupação sustentável dos territórios para prevenção ao desmatamento”.
Uma experiência exitosa de inserção no mercado regulada por valores efetivamente sustentáveis é a da Comflona – Cooperativa Mista da Floresta Nacional do Tapajós. “Nos 1600 hectares de manejo florestal comunitário de baixo impacto, a gente ganhou 10 milhões de reais no ano passado mantendo a floresta em pé, sem nenhuma área desmatada nos registros do governo” – conta o vice-presidente Jeremias Dantas. “E a vizinha Floresta Nacional do Jamanxi, no mesmo eixo da BR-163, perdeu 60 mil hectares em área desmatada no ano. Por aí dá pra ver que o valor das perdas com o desmatamento é incalculável” – espanta-se. “E dificilmente haverá condições de recuperar isso, porque no ano seguinte os madeireiros vão lá retirar o que ficou, não sobra nada nem para o futuro.”
A Comflona se enquadra no nicho dos empreendimentos de grande escala, mas segundo Jeremias “enfrenta as mesmas dificuldades que o pequeno tem: muita coisa nova que a gente vem desenvolvendo, tentando implementar, não consegue avançar por falta de políticas públicas adequadas para o manejo florestal”. A diferença de porte não significa, porém, um distanciamento na visão política das comunidades: “A gente espera que essa agenda mínima, com o apoio desse grupo e das ONGs, o movimento se fortaleça, e a gente consiga dar visibilidade para o pequeno e para o grande empreendimento comunitário que avançou um pouco mais”.
Passo a passo
“Assim como a Cooperfloresta no Acre, a Comflona é uma experiência de vitrine, em que se alcançou a fase de comercialização, que já experimentou uma relação com o mercado, tirou lições importantes” – explica Manuel Amaral, do IEB. “Mas também tem casos embrionários, onde tudo está por fazer. É este intervalo de experiências de manejo que deve ser objeto de preocupação nossa.” Ao avaliar o impacto da Carta de Brasília, ele prevê que o governo federal deva fazer “um grande investimento para acomodar a meta de aprovação de 20% dos planos de manejo protocolados”. E, com isso, “os gargalos estruturais que inviabilizam o MFCF se tornarão cada vez mais claros”, porque hoje “o governo nem olha pra isso, e a partir do momento em que se debruçar vai ser forçado a exercitar a superação dos entraves”.
Do ponto de vista da preparação das comunidades extrativistas para o licenciamento e a execução do manejo, Manuel Amaral acredita que “no diálogo com os governos em torno do cumprimento dessa meta será possível identificar um passo a passo, ao observar a heterogeneidade dos casos e estruturar estratégias para casos específicos”. Na visão dele, “há um vácuo estrutural nessa agenda, e somente com uma articulação forte nós poderemos tratar dessas questões, resgatando uma dinâmica de reuniões, de pautas, retomando o protagonismo que a sociedade civil já teve nessa agenda”.
“O momento é estratégico: diante da tendência de voltar a crescer o índice de desmatamento, o Manejo Florestal Comunitário se apresenta como saída pra detê-lo; temos também a necessidade de retomada do crescimento econômico salvaguardando, ao mesmo tempo, a importância que a Amazônia tem para manutenção do clima. São debates que serão aprofundados no próximo período” – concluiu o coordenador regional do IEB Belém.
* Veja íntegra da Carta de Brasília aqui.