Leia o Editorial do ISA sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que atenta contra os direitos dos povos indígenas.
No apagar das luzes da legislatura, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) apresentou novo relatório sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Originalmente, o projeto pretendia transferir do Poder Executivo para o Legislativo a decisão final sobre a demarcação das Terras Indígenas (TIs). A proposta, em si, já é uma excrescência, pois viola o princípio da divisão de competências entre os poderes ao atribuir uma função administrativa a um Congresso que tem tido dificuldades para legislar, encontra-se pulverizado em dezenas de partidos e de grupos de interesse corporativos e não dispõe de representação indígena.
Mas o relator foi muito além em seu novo parecer, incorporando outras propostas que transformam a PEC numa ampla grade de exceções de direitos, abrindo as TIs à implantação de todos os tipos de empreendimentos econômicos, obras de infraestrutura, assentamentos de não índios e, inclusive, exclusão de propriedades privadas ou ocupações consolidadas dessas terras. É como se ficassem anuladas todas as garantias introduzidas pelos constituintes no caput e nos sete parágrafos do artigo 231 da Constituição e demais dispositivos referentes aos direitos indígenas.
Pior: o relatório incorpora um dispositivo de cunho retroativo, permitindo rever os limites de TIs já demarcadas, violentando direitos adquiridos e submetendo à mais completa insegurança jurídica tudo aquilo que o estado brasileiro fez nas últimas décadas para reparar as injustiças históricas praticadas contra os povos indígenas. Note-se que o deputado Serraglio, que também relatara a PEC na Comissão de Constituição e Justiça, havia, então, excluído de seu texto disposição similar por ser inconstitucional.
Explica-se: o deputado não é um relator efetivo, mas, segundo escutas realizadas pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal, prestou-se a subscrever um parecer que pode ter sido elaborado por Rudy Maia Ferraz, advogado que prestou serviços remunerados para a Confederação Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) (saiba mais).
Também cabe registrar que a comissão especial da PEC 215, dominada por ruralistas e que pretende aprovar esse espúrio relatório, não se prestou a consultar os índios, sujeitos fundamentais de direitos, no caso. Sua agenda priorizou audiências que se realizaram em sindicatos rurais patronais situados em regiões de conflito. Numa audiência realizada em Vicente Dutra (RS), em novembro, o deputado ruralista Luís Carlos Heinze (PP-RS) ofendeu índios, quilombolas e gays. O também ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS) incentivou produtores rurais a usar segurança privada para expulsar indígenas das terras que consideram suas. Ambos são integrantes da comissão. Os discursos dos parlamentares foram registrados em vídeo (veja aqui).
A audiência às partes interessadas é indispensável à tramitação de qualquer alteração à Constituição e, no caso, a exclusão dos índios violou, também, a exigência de consulta prévia aos povos indígenas e populações tradicionais prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo próprio Congresso e que tem status de lei.
O relatório Serraglio não se limita a ofender a Constituição no que tange aos direitos indígenas. Mesmo reconhecendo expressamente a impossibilidade de analisar outras PECs apensadas à 215, emite parecer favorável a elas, viabilizando a sua tramitação rumo ao plenário sem qualquer discussão e, mesmo, sem que os segmentos sociais ou agentes públicos respectivos tenham sequer conhecimento dessas outras alterações do texto constitucional que afetam, também violentamente, os direitos dos quilombolas e dos extrativistas, além de desorganizar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).
Embora a presidente Dilma Rousseff tenha reafirmado a sua oposição à PEC 215, o governo e suas lideranças na Câmara vêm assistindo passivamente a sinistra evolução da sua tramitação. Parecem não perceber que, além dos direitos fundamentais dos índios e das populações tradicionais, também estão em jogo passivos fiscais, potencialmente monumentais, implícitos em algumas das pretensões reacionárias incorporadas ao texto.
Antes mesmo do relatório, a PEC 215 já havia sido objeto de questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF), tendo o seu relator, ministro Roberto Barroso, evitado intervir em estágio ainda inicial do seu processo legislativo. Porém, mesmo não constando do texto por ele analisado as demais ilegalidades inseridas no atual relatório, não se furtou a antecipar um contundente juízo de mérito.
“Essas considerações suscitam relevantes dúvidas quanto à validade, em tese, da PEC nº 215/2000, tendo em vista não só os direitos dos índios, mas também outro direito fundamental – a proteção aos direitos adquiridos (CF/88, art. 5º, XXXVI) – e, possivelmente, até a separação dos poderes, igualmente acolhida como cláusula pétrea (CF/88, arts 2º e 60, § 4º, III). Por todas essas razões, é plausível a alegação dos impetrantes de que a proposta impugnada não poderia ser objeto de deliberação”, diz Barroso.
“Essas considerações suscitam relevantes dúvidas quanto à validade, em tese, da PEC nº 215/2000, tendo em vista não só os direitos dos índios, mas também outro direito fundamental – a proteção aos direitos adquiridos (CF/88, art. 5º, XXXVI) – e, possivelmente, até a separação dos poderes, igualmente acolhida como cláusula pétrea (CF/88, arts 2º e 60, § 4º, III). Por todas essas razões, é plausível a alegação dos impetrantes de que a proposta impugnada não poderia ser objeto de deliberação”, diz Barroso.
O ano de 2015 promete tensões inéditas. Se, em sua nova legislatura, o Congresso seguir se prestando à violação de direitos fundamentais, estará emitindo uma declaração de guerra contra populações indefesas e não representadas nas instâncias de decisão política, mas que estão conscientes dos seus direitos e não assistirão passivamente ao seu esbulho.
* Publicado originalmente no site Instituto Socioambiental.
(Instituto Socioambiental)