Foto registrada em 2011 mostra acampamento indígena na BR-463, no MS. Arquivo, MPF
Na primeira matéria da série, entenda o processo de regularização e os problemas sociais que sua demora ocasiona.O Ministério Público Federal (MPF), um dos órgãos responsáveis pela defesa dos direitos indígenas, aproveita o Dia do Índio (19 de abril) para intensificar uma discussão muito importante: a garantia das terras que os povos indígenas tradicionalmente ocupam. Nos próximos três dias, será publicada uma série de matérias sobre diversos aspectos que envolvem a demarcação: a falta de acesso a serviços públicos que a demora em demarcar ocasiona; as dificuldades que o processo enfrenta, como resistência de setores econômicos e batalhas judiciais; e a violência e o preconceito que vitima os indígenas em áreas que estão sendo regularizadas.
Problemas sociais – A demora do Estado para regularizar terras indígenas deixa tal parte da população vulnerável. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as terras que continuam sem regularização final, mesmo as registradas e declaradas, são mais expostas a invasões, ocupações, desmatamento e exploração ilegal de recursos naturais. A morosidade causa ainda outro tipo de violência: a social.
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, milhares de indígenas de diversas etnias transformaram a beira de rodovias em moradia permanente, com todos os riscos inerentes a tal situação. Foi nesse contexto que ocorreu a morte de Sidney Cario de Souza, em 28 de junho de 2011. Ele foi atropelado por dois ônibus na BR-463, próximo ao acampamento em que vivia, a sete quilômetros de Dourados, no sul do estado. Sidney andava a pé pela estrada quando um primeiro ônibus o atingiu, jogando-o na pista. Um segundo ônibus, então, passou por cima de seu corpo, dilacerando-o.
Em novembro de 2007, o MPF chegou a assinar termo de ajustamento de conduta (TAC) com a Fundação Nacional do Índio (Funai), estabelecendo junho de 2009 como prazo para a publicação dos estudos antropológicos que definiriam quais são as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas em Mato Grosso do Sul. A partir de então, porém, iniciou-se uma batalha judicial para impedir os estudos e a posterior demarcação.
De acordo com o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, os obstáculos são fundamentalmente jurídicos. “O processo de demarcação se dá em um cenário muito doloroso, e a falta de acesso aos serviços públicos, como saúde e educação, tem relação direta com essa situação. É um campo de concentração, só que em dimensões maiores”, diz.Em maio de 2012, o MPF constatou que, na aldeia Passo Piraju, a 25 quilômetros de Dourados, 189 indígenas guarani-kaiowá estavam sendo submetidos a procedimentos médicos ao ar livre. O ‘posto de saúde’ já havia sido nas sombras de um pé de maracujá e, na época, foi deslocado para debaixo de uma moita de taquara. A comunidade recebia a visita do agente de saúde a cada 15 dias, mesmo existindo pacientes que necessitavam de acompanhamento médico regular. Além disso, a aldeia não possuía energia elétrica, problema grave para a saúde de adultos e crianças em razão das dificuldades de armazenamento de alimentos. Inclusive, havia relatos de recorrentes casos de diarreia.
O MPF protocolou ação na Justiça Federal de Dourados pedindo a construção imediata de posto de saúde e a instalação de rede de energia elétrica por meio do programa Luz Para Todos. Contudo, a promoção dessa política pública aos índios esbarra na ausência de demarcação. Segundo o juiz responsável pelo caso, “o fato de a área ocupada pelos índios ainda não ter sido demarcada como território tradicionalmente ocupado por indígenas, se não impede, ao menos milita em desfavor das pretensões das pessoas que ali habitam, uma vez que a posse de parte do imóvel se vislumbra precária”.
Os problemas de saúde não são exclusividade do Mato Grosso do Sul. A cena se repete em Santa Maria do Pará, cidade próxima à capital do estado, Belém. Lá, a população indígena Tembé das aldeias Jeju e Areal não é atendida pelo Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena Guamá/Tocantins. O motivo? Inexistência ou não conclusão de procedimento de demarcação do território que tradicionalmente ocupam.
Em 10 dezembro de 2012, como parte do Dia D da Saúde Indígena, o MPF entrou na Justiça Federal do Pará com ação civil pública contra a Secretaria de Saúde Indígena. Segundo o órgão, a Constituição determina o atendimento de saúde aos índios independente da regularização de seus territórios. “Se observa uma total deficiência do Estado na prestação de serviços públicos. Os índios muitas vezes estão totalmente desprovidos de qualquer apoio”, avalia a procuradora da República Melina Alves Tostes.
No Sergipe, a comunidade indígena Xocó, residente na Ilha de São Pedro, é abastecida com água do Rio São Francisco, que está contaminado por esgotos lançados pelos municípios vizinhos. O caso também é alvo de ação civil pública movida pelo MPF no final do ano passado. A procuradora da República Lívia Nascimento Tinôco lembra que o acesso à água potável está inexoravelmente ligado ao conceito de dignidade humana.
Em Capivari do Sul, no Rio Grande do Sul, cerca de 13 famílias Guarani vivem em acampamento precário na beira da RS-040. Além de não terem condições mínimas de moradia, saúde, alimentação e saneamento básico, o acampamento encontra-se abaixo do nível da rodovia, motivo de alagamentos constantes e escoamento do lixo que se encontra na pista. Está em tramitação na Justiça ação do MPF que busca reverter tal situação.
A demora na demarcação também dificulta o acesso à educação. Um caso típico é o da comunidade Ypo’i, em Paranhos, no sul do Mato Grosso do Sul, que, em 2011, não podia usufruir de transporte escolar porque não tinha permissão de proprietário rural para se locomover dentro de uma fazenda. Um acordo assinado entre a Funai e a Prefeitura Municipal de Paranhos disponibilizava o transporte escolar da porteira da fazenda até as escolas, mas os estudantes guarani-kaiowá não podiam percorrer o trecho entre a reserva legal da propriedade, onde estavam acampados, e a entrada principal. O MPF precisou intervir para garantir que aproximadamente 60 crianças voltassem a estudar.
Por que e como demarcarDemarcar as terras que pertencem aos povos indígenas, no sentido do que estabelece a Constituição Federal (artigo 231), é o processo de regularização dessas áreas, que se realiza pelas seguintes etapas: identificação e delimitação, declaração dos limites, demarcação física, homologação e registro cartorial. Tal regularização compete à União e é a garantia legal de que determinada porção de terra é de uso exclusivo de determinado(s) grupo(s) indígena(s).
Todo o processo está previsto no Estatuto do Índio (Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973) e no Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Diz, por exemplo, que a demarcação terá como base estudos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida — o antropólogo é um especialista em características socioculturais da humanidade, como costumes, crenças, comportamento, organização social, etc. Entre outras coisas, esse estudo reúne informações de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e fundiária necessárias à delimitação.
Esses estudos são necessários porque, para os índios, a terra não é apenas o meio de onde obtêm o necessário para sua sobrevivência, ela remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Assim, há necessidade de se conhecer as formas próprias de organização territorial de cada povo indígena para se reconhecer seu direito às terras que ocupam tradicionalmente.
Um bom exemplo dessa especificidade com relação ao território, segundo a antropóloga Dominique Gallois, é o grupo Zo’é, para quem mostra-se claramente inadequada a noção de “habitação permanente”, no sentido de uma vida com habitação fixa e centrada em aldeias. Eles mesclam o período de cuidar das roças com deslocamentos para outras aldeias onde mantêm roças e com expedições para fins de caça, pesca e coleta. A agricultura e a roça demarcam o lugar dos Zo’é no mundo, mas este é um elemento que satisfaz apenas parcialmente suas necessidades. As atividades de caça, pesca e coleta exigem áreas de ocupação mais amplas que o perímetro da roça.
A ideia, muitas vezes difundida por aqueles contrários aos direitos indígenas, de que ‘há muita terra para pouco índio’ decorre justamente do desconhecimento das distintas lógicas espaciais dos povos indígenas, principalmente daqueles que vivem em áreas da floresta amazônica, bem como da ocultação da realidade fundiária da maior parte dos povos indígenas das demais regiões brasileiras, onde as dimensões das terras que lhes foram reconhecidas são, em não poucos casos, insuficientes para sua reprodução física e cultural.
* Publicado originalmente no site Ministério Público Federal do Pará. (Ministério Público Federal do Pará)
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