Universo Energético
Ucrânia Ameaça o Legado da Política Exterior de Obama
Absolutamente não tem importância alguma o quanto teria sido genuína, ou encenada como ‘resposta’ a pressões domésticas contra
Obama, de que ele estaria sendo ‘fraco’ em suas políticas externas, a postura truculenta e ameaçadora que o Secretário de Estado dos EUA John Kerry assumiu na entrevista à rede CBN[1] sobre Moscou – e diretamente contra o presidente Putin. O que importa é que Kerry ‘exigiu’ a virtual capitulação da Rússia ante a ameaça de retribuição norte-americana, e essa é atitude de desonestidade e de irrealismo.
A história da atual crise na Ucrânia não começou com a autorização, pelo Parlamento russo, para que Putin use força militar na
Ucrânia, se a entender necessária. Kerry pode facilmente confirmar isso, se perguntar à sua subordinada, a secretária-assistente Victoria Nuland, se ela realmente discutiu seu próprio mapa do caminho para uma ‘revolução colorida’ na Ucrânia, pelo telefone, com o embaixador dos
EUA em Kiev Geoffrey Pyatt, na famosa conversação “Foda-se a União Europeia” há dois meses.
De fato, aquela conversa aconteceu dia 11 de dezembro, e os eventos subsequentes na Ucrânia, inclusive a posse como primeiro-ministro de Arseniy “Yats” Yatsenyuk, seguiram precisamente o mapa do caminho de Nuland. Dado que Kerry não interpelou sua subalterna, ele também tem as próprias mãos também sujas de sangue. O mesmo vale para a conversa sobre a Carta da ONU, a lei internacional, as normas do comportamento entre estados no século 21 e blá-blá-bla. Kerry está sendo desonesto, quando faz pose de moralidade política.
O ponto de partida para solução razoável para a crise é o governo Obama assumir, como pano de fundo de sua argumentação, que, sim, empreendeu tentativa deliberada para despertar o novo espírito de guerra fria na Europa, como artifício para reestabelecer a liderança transatlântica de Washington, em termos de uma estratégia para “conter” a
Rússia.
Por isso também, as ameaças de Kerry a Moscou são ridículas. Em primeiro lugar, porque os EUA já não têm a hegemonia global e já não conseguem comandar uma “coalizão de vontades” na política mundial. É o que se vê, evidente, nas ameaças ocas que Kerry fez.
Kerry ameaçou a Rússia de que os EUA e seus aliados boicotarão a reunião do G8 em Sochi em junho, e até puseram em dúvida a elegibilidade da Rússia como país-membro do G8. Grande coisa! Niall Ferguson escreveu postado ótimo, na Spectator,[2] em que mostra em que se converteu o G8. Sim, conforme os números do PIB do ano passado, os BRIC estão a um passo de tomarem a coroa de ases indomáveis, de EUA, Japão, Alemanha e Grã-Bretanha.
Portanto, Kerry delira, ao falar de G8. E a Rússia talvez cederia na sua determinação de resistir contra a estratégia de “contenção” dos EUA, só para não perder a posição de membro do G8?! Kerry só pode estar fazendo piada.
O mesmo vale para as sanções econômicas que EUA ameaçaram impor à Rússia. Como seria possível conseguir que a Europa impusesse boicote econômico a Moscou, se a Europa depende criticamente do suprimento de energia russa? É verdade que os EUA não têm grandes negócios ou investimentos com a Rússia. Mas a Alemanha, com certeza, tem. E o
Japão? O ministro Shinzo Abe engoliria essa estratégia, que o faria ‘desperdiçar’ a Rússia como contrapeso em seu confronto com a China – e tudo por causa da Ucrânia?
Mas é verdade também que Kerry é político e diplomata experiente. Assim sendo, por que disse todas aquelas tolices na entrevista à CBS? Disse o que disse, parece-me, com olhos postos nas elites políticas russas. Há na Rússia um ativo e influente lobby de “ocidentalistas”, que tradicionalmente dominaram a política externa russa pós-soviética. E eles nunca engoliram o movimento de “pivô na direção da Ásia”, de Putin.
Uma grande fatia das elites russas estacionam suas mal havidas fortunas em países ocidentais, e são afetadas pela ameaça de Kerry, de “congelar” seus bens. Em essência, Kerry deu-lhes uma cutucada, para que se mexam.
É uma velha tese, persistente entre os especialistas norte-americanos em Rússia, como Nuland – que a estrutura de poder russa é eivada de facções e gangues sempre vulneráveis à manipulação pelos EUA, e que a autoridade de Putin pode ser minada por dentro.
Mas Kerry vive na ilha-da-fantasia. Como Moscou algum dia cederia na questão de a Ucrânia ser empurrada na direção de União Europeia e
OTAN, quando essa é questão existencial para a Rússia?
O conhecido trabalho de Zbigniew Brzezinski sobre “O grande tabuleiro de xadrez”,[3] que tem influência profunda nas políticas para a Rússia de sucessivos governos dos EUA desde o final da Guerra Fria, é essencialmente construído sobre uma matriz política que prega que, sem a parceria com a Ucrânia, a Rússia enfraquece; e que aí está a via que levará à dominação pelos EUA, no século 21.
Dito em termos simples, os EUA morderam mais do que podem mastigar, no caso da Ucrânia. É verdade que, como Nuland queria, “Yats” tornou-se primeiro-ministro. Mas, sem a aquiescência da Rússia, que absolutamente não tem nem obterá,[4] ainda faltam anos-luz para montar qualquer governo sucessor em
Kiev que seja suficientemente estável e com autoridade sobre aquele grande país, com mais de 45 milhões de habitantes.
O governo Obama enfrentará uma subida por encostas escorregadias, para persuadir os aliados europeus a continuarem a rolar as dívidas da economia ucraniana. É difícil cumprir a proposta de substituir com suprimentos norte-americanos ou europeus o gás russo fortemente subsidiado do qual sobrevive a economia da Ucrânia. A Ucrânia tem dívidas que chegam a dezenas de bilhões de dólares.
O mais importante é que a Rússia resistirá, não importa a que custo, a qualquer movimento dos EUA para aproximar a Ucrânia da União Europeia ou da OTAN. E não há consenso dentro da Ucrânia a favor dessa cooptação para a órbita ocidental. A opinião pública está dividida ao meio – e hoje, ainda mais que antes. Se os agentes dos EUA que estão no poder em Kiev tentarem empurrar-lhes à força uma decisão, a região leste, que quer preservar laços milenares com a Rússia, se revoltará.
Como a luta de sombras na Crimeia destaca, a Rússia, hoje, precisa fazer, de fato, bem pouco, para alavancar o que venha depois. Não precisa ‘invadir’ a Ucrânia. A Rússia tem apenas de impedir que procuradores norte-americanos em Kiev mostrem muitos músculos na Ucrânia do leste e na Crimeia. Na Crimeia, a revolta das lideranças políticas locais contra o putsch insuflado pelos EUA em Kiev não pode ser esmagada por meios militares.[5] Foi o que Moscou já assegurou, com um mínimo de esforço.
A fragilidade fundamental da estratégia norte-americana é que a Ucrânia não é algo que a “Velha Europa” sinta no sangue e no coração. A estratégia dos EUA é orientada e cimentada pela obcessão com “isolar” a Rússia – que não é obcessão para a “Velha Europa”.
Por fim, se Kerry prosseguir e levar adiante suas ameaças, Moscou não esperará sentada. No mínimo, se Putin adotar a via Gandhiana da “não cooperação”, os EUA enfrentarão graves problemas em várias questões de política exterior.
Se os EUA impuserem sanções contra a Rússia, Moscou, quase com certeza, atropelará as sanções de Washington contra o Irã, o que provocará tamanho buraco na tapeçaria da política externa de Obama, que ele ficará sem saber para que lado se mexe. De fato, um alto diplomata iraniano já está em Moscou[6] para consultas.
Bem fará Obama se aferir com mais cuidado os limites do poder norte-americano.
A coisa certa que cabe a Obama fazer é pôr no seu lugar o lobby neoconservador e meter sob rédea curta os poderosos ‘especialistas em Rússia’ do establishment da política exterior dos EUA, que hoje atropelaram o presidente e estão no comando das políticas externas dos EUA.
Nuland é protegida de Madeline Albright; ela mesma é de origem moldoviana, e além disso, é casada com afamado ideólogo neoconservador, Robert Kagan. Que mistério inextrincável haveria aí, tão difícil de decifrar? Obama nem precisa procurar muito longe, para ver onde está o problema. O problema de Obama está dentro da casa dele. Obama não deveria continuar a ser presidente ausente, no que tenha a ver com a construção de políticas para a Rússia. ****
[1] CBS News: John Kerry warns of consequences for Russia after Ukraine invasion
[2] “Foi em 2001 que meu bom amigo Jim O’Neill de Goldman Sachs cunhou a sigla BRIC – para Brasil, Rússia, Índia, China. Eram então os mercados emergentes, que logo ultrapassariam as economias desenvolvidas. Pois... aconteceu! OK, não completamente. Mas está quase lá.
Gosto muito de uma boa sigla e sempre estranhei muito que não houvesse sigla também para as quatro maiores economias já estabelecidas (digamos) do mundo. Segundo o FMI, essas quatro são hoje EUA, Japão, Alemanha e Grã-Bretanha (segundo os números do PIB do ano passado). Então, proponho a sigla JAGUU.
Ascensão dos BRIC e queda dos JAGUU tem ótima sonoridade. Segundo uma das medições do FMI – sempre as mais favoráveis aos mercados emergentes – os BRIC ainda não ultrapassaram os JAGUU, mas ultrapassarão, dentro de cinco anos.
O fato de que as respectivas fatias de BRICs e JAGUUs na produção global já sejam hoje praticamente iguais (27% para BRICs, 31% para JAGUUs) fala por ele mesmo: há trinta anos, eram, respectivamente, 14% e 45%. (1/3/2014, Niall Ferguson, The Spectator (blog), Grã-Bretanha [excerto], em The Spectator: Niall Ferguson’s diary: Brazil is overtaking us – but it no longer feels like that, aqui traduzido) [NTs].
[3] Foreign Affairs: The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives
[4] Reuters: Russian PM Medvedev warns Ukraine's new leaders they won't last
[5] Ria Novosti: Crimean Authorities Confirm Takeover of Military Units
[6] Tehran Times: Iranian deputy FM visits Moscow
Traduzido por Vila VuduLeia mais:
EUA x União Europeia na Disputa pela Ucrânia
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EUA e União Europeia: Juntos para Derrubar a Democracia na Ucrânia
Fontes:Indian Punchline: Ukraine imperils Obama’s foreign-policy legacy
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