Mapas do governo indicam que Sudeste e Centro-Oeste ficarão mais secos em 25 anos; vazões de rios na Amazônia poderão ter redução
As estiagens em série que vêm secando os reservatórios das usinas hidrelétricas podem virar regra no Centro-Sul do Brasil nos próximos 25 anos. É o que indicam modelos climáticos produzidos pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) sob encomenda da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Os modelos foram reproduzidos nos mapas que ilustram este texto. Eles mostram que, em 2040, boa parte do Brasil estará, em média, mais quente e mais seca do que no período anterior a 1990. As áreas mais claras correspondem a regiões onde a redução de precipitação no verão pode ultrapassar os 5,4 milímetros por dia.
O cruzamento entre os mapas de chuva e a localização das usinas hidrelétricas do país, que pode ser feito por meio de uma base de dados do IBGE de acesso aberto, mostra um quadro delicado para a geração de energia no país: grande parte das usinas do Sudeste e do Centro-Oeste (traços pretos na imagem), que geram a maioria da hidroeletricidade brasileira, estão justamente na região com a maior redução média na quantidade de chuva.
Uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará está usando os modelos para tentar prever como a vazão dos rios poderá variar em função da redução nas chuvas. Resultados preliminares do trabalho foram mostrados ao secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia, Altino Ventura Filho, e sugerem que várias usinas podem ter redução de capacidade geradora – inclusive na Amazônia, onde está centrada a expansão do parque hidrelétrico brasileiro.“Temos indicações razoavelmente seguras de que teremos reduções de vazão no Norte e no Nordeste e aumentos de vazão na região Sul”, afirmou o secretário ao Observatório do Clima.
Os mapas de precipitação fazem parte do estudo “Brasil 2040: Cenários de Adaptação à Mudança do Clima”, coordenado pela SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República). O trabalho, encomendado a vários grupos de pesquisa do país, é o mais completo já feito para embasar políticas públicas de adaptação no médio prazo, em quatro áreas: energia, agricultura, recursos hídricos e infraestrutura. O estudo deve ficar pronto até o mês que vem.
Segundo Natalie Unterstell, diretora de Programas da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável da SAE, incluir critérios de risco e adaptação às mudanças climáticas tornou-se fundamental no planejamento do desenvolvimento no país. “Os próprios gestores do Programa de Aceleração de Crescimento já entenderam que terão de definir perfis de risco climático”, afirmou. Quando, por exemplo, as projeções futuras de chuva eram aplicadas ao mapa de municípios do Plano Nacional de Gestão de Risco e Respostas a Desastres Naturais, a lista das cidades sob maior risco mudava.
Regionalização
Para tentar entender como o calor e a chuva poderão variar no país até 2040 e 2070 e no final do século, o Inpe fez um exercício de regionalização de modelos climáticos. Foram usados dois modelos adotados para fazer cenários do clima global pelo IPCC, o painel do clima das Nações Unidas. Esses modelos são grandes simulações da Terra, onde são incluídas variáveis como vento, oceanos e florestas. Alimentando-os com dados sobre a taxa de emissões de gases de efeito estufa, eles conseguem estimar como o clima vai variar nas próximas décadas ou séculos.
Os modelos do IPCC têm a vantagem de enxergar o planeta inteiro, porém são “míopes”: eles dividem o mundo em células de 200 km x 200 km, grandes demais para permitir investigar variações climáticas dentro de uma região geográfica menor ou um país. O que o Inpe fez foi usar dois desses modelos e aumentar sua resolução para 20 km x 20 km, dando um zoom na América do Sul. Isso permitiu montar pela primeira vez cenários detalhados de chuva e temperatura para as próximas décadas no Brasil.
Dois modelos foram utilizados: o britânico HadGEM-2 e o japonês Miroc-5. Por uma questão de personalidade matemática, por assim dizer, ambos “enxergam” o clima no futuro de jeitos diferentes: o britânico tende a apontar um mundo mais seco no futuro, enquanto o japonês vê um mundo mais chuvoso. O IPCC usa mais de 20 modelos, então consegue fazer uma média realista das projeções climáticas descontando os extremos de cada um.
O Inpe traçou, a partir dos dois modelos, diversos cenários de chuva para inverno e verão, considerando várias estimativas diferentes para as emissões de carbono até 2040. Os mapas que ilustram este texto mostram um mundo com emissões seguindo a tendência atual. No Miroc-5, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e os Andes (onde nascem os grandes rios da bacia amazônica) ficam mais secos no verão. No HadGEM-2, a região de chuvas escassas se amplia para a maior parte do Sudeste, Paraná, Amazonas e Mato Grosso do Sul.
Os modelos regionais carregam uma boa dose de incerteza. “É preciso muito cuidado em generalizar os resultados”, afirma o climatologista Carlos Nobre, do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de desastres Naturais). Segundo ele, modelos regionais usam dados atmosféricos e oceânicos de modelos globais – as chamadas “condições de borda”, e isso pode introduzir um viés próprio em cada um. Os climatologistas não ousam fazer previsões para regiões menores que 1.000 quilômetros quadrados – quase a área da cidade de São Paulo.
Mesmo assim, e mesmo com diferenças, os dois modelos apontam na mesma direção de um Centro-Sul mais seco e mais quente: as temperaturas no Centro-Sul do país no verão podem ficar até 5o C mais altas na simulação do HadGEM-2.
Segundo Roberto Schaeffer, professor da Coppe-UFRJ e coautor de um estudo pioneiro de 2008 sobre o impacto das mudanças climáticas na produção de energia, o que os novos dados reforçam, com muito mais precisão, indicações anteriores de que as hidrelétricas devem ser negativamente afetadas.
“Na sua concepção, as hidrelétricas nacionais foram projetadas para operar, no futuro, segundo uma hidrologia que repetisse a hidrologia do passado”, diz Schaeffer. “Mas o conhecimento científico de hoje aponta para uma não repetição, num futuro relativamente próximo se comparado à vida média esperada das hidrelétricas brasileiras, do histórico hidrológico anterior.” Segundo ele, isso torna o problema “sério” para o Brasil, que ainda depende fortemente de hidrelétricas para gerar energia.
Sem mudanças
O secretário Altino Ventura afirmou que, mesmo diante das previsões dos modelos, o planejamento de hidrelétricas do país, que inclui uma forte expansão de usinas na Amazônia, não deve mudar. “Nós não vamos deixar de fazer hidrelétricas no Brasil por causa do nível de informação neste ponto”, disse.
Segundo Ventura, há duas razões para crer que o sistema elétrico brasileiro tenha resiliência às mudanças no clima. A primeira é a diversidade hidrológica: os rios das diversas bacias sofrem influências diferentes e têm regimes diferentes. Como o sistema é interligado, a energia de uma região pode ser usada para suprir a falta em outra. “Se eu aumento as vazões no Sul e reduzo no Nordeste, eu uso as usinas do Sul para gerar energia”, afirmou.
A outra razão é a chamada diversificação da matriz. A geração hidrelétrica vem perdendo fatias do total da matriz elétrica para as termelétricas e hoje também para as eólicas. Segundo Ventura, a participação da energia hídrica caiu de 80% para 70% e pode chegar a 60% em 15 ou 20 anos “Hoje o sistema é hidrotérmico-eólico, e vai ser fotovoltaico também, não por causa de mudanças climáticas, mas porque esta é a maneira certa de fazer”, disse o secretário.
Além disso, prosseguiu, as projeções dos climatologistas falam em impactos em 30 anos – o mesmo tempo de vida útil de uma hidrelétrica construída hoje. “O mais importante são os dez primeiros anos de uma usina”, diz. “Temos mecanismos para acompanhar os 30 anos das hidrelétricas e a evolução. Na medida que essas hidrelétricas passem a produzir menos ao longo do tempo, e isso é um processo lento, vamos tomar as medidas para garantir a confiabilidade do sistema.”
Apesar do sistema interligado, diz Schaeffer, o país tem outras fragilidades. Como a Amazônia não comporta grandes reservatórios, por ter rios de planície, as novas usinas são em sua maioria a fio d’água e possuem pouca capacidade de armazenar água – ou seja, usar energia do Sul para compensar o que falta no Norte é uma operação que tem limites.
“Mesmo a maior diversificação recente da matriz elétrica nacional, com maior presença de renováveis e, principalmente, de térmicas a combustíveis fósseis, pode não ser suficiente para lidar com o problema de maneira custo-efetiva, na medida em que as térmicas que vêm sendo instaladas não foram projetadas para atender a carga de base, por terem custos de combustível e de operação proibitivos. Isto pode fragilizar a operação futura do sistema interligado nacional, a menos que o setor passe a incorporar, no seu planejamento a partir de agora, a variável climática.”
Na base de dados Inde, do IBGE, você pode gerar mapas que mostram como a infraestrutura no Brasil pode ser afetada pelo clima no futuro.
Um guia para o uso da Inde pode ser encontrado aqui.
* Publicado originalmente no site Observatório do Clima.
(Observatório do Clima)