Foto: Agência Brasil
Os anúncios publicados em jornais e revistas exibem essas máquinas maravilhosas e redentoras. A cada duas ou três páginas desses magazines de consumo instantâneo lá estão elas a mostrar seus
designs modernos e suas cores vibrantes. Já na televisão, os automóveis assumem ares de verdadeiros deuses a transformar a paisagem e são capazes de elevar seu proprietário ao Olimpo da plena realização dos desejos.
Infelizmente repletos de fantasias, os veículos de transporte individual nos são apresentados como pertencentes ao topo da cadeia alimentar do consumo e do status social. Ser possuidor de um carro, portanto, é um sinal inequívoco de sucesso. Nada mais, nada menos do que o ápice da existência humana.
Esse desserviço diário e cotidiano da publicidade, aliado aos interesses econômicos de curto prazo causam nas cabeças de nossos governantes, uma confusão mental esquizofrênica. Afinal, incentivar a instalação de novas montadoras de automóveis, aumentar a produção e, portanto os números absolutos de veículos circulando em nossas cidades, só pode fazer parte de algum plano de cientista maluco desses que a gente se acostumou a ver em filmes que elaboram peripécias mil para acabar com o mundo.
Não é preciso ser especialista no assunto para atestar a falta total de bom senso ao incentivar um tipo de consumo que está nos levando a uma completa imobilidade em nossos centros urbanos, sejam eles grandes ou pequenos. A redução no IPI dos automóveis promovida pelo Governo Federal e as desonerações fiscais promovidas por Prefeituras para trazer essas fábricas para suas cidades, são dois dos principais exemplos de medidas de caráter puramente econômico de curto prazo, com efeitos nefastos para a vida das pessoas.
O falso dilema da gestão públicaDiante desse cenário assistimos as tentativas de acomodação para situações que, neste momento, ocupam posições totalmente opostas: transporte individual e mobilidade urbana, simplesmente não falam a mesma língua.
Um exemplo recente noticiado pelo jornal Estado de São Paulo constatou, que um complexo viário em Osasco na Grande São Paulo construído pelo Governo do Estado tinha o objetivo de desafogar o trânsito em direção à capital. A obra custou R$ 233 milhões aos cofres públicos (5 viadutos, 14 kms de marginais e 6 kms de faixas adicionais) e a conclusão, o tráfego ainda piorou, pois a média diária na circulação aumentou de pouco mais de 21 mil veículos para 28 mil. Resultado final prático: dinheiro público desperdiçado e incentivo ao uso do automóvel.
Plano de metas e votos futurosRealizar as mudanças necessárias e não ceder às críticas da minoria privilegiada é um enorme e necessário desafio. Afinal, estudos já apontaram que 28% da população na cidade de São Paulo fazem uso de carros para sua locomoção, enquanto 30% andam à pé e quase 40% se utilizam de transporte público (ônibus e metrô).
O prefeito paulistano, Fernando Haddad, anunciou com pompa algumas de suas ações de mobilidade para a capital paulista. Entre elas, a construção de 150 kms de corredores de ônibus e com espaços, nesses mesmos corredores, para ciclovias, além de, em alguns casos, a perda de espaço para os carros em locais onde serão implantadas as novas faixas exclusivas. Hoje em dia, 3,2 milhões de pessoas fazem uso diário dos corredores de ônibus em São Paulo
A Prefeitura acredita que o incentivo ao transporte público tornado mais rápido nesses corredores exclusivos irá desestimular o uso do automóvel particular. Ônibus mais velozes, redução da poluição (os novos serão movidos a biocombustível) e … possíveis protestos!!
Será preciso tempo para saber se a redução no espaço ocupado pelos automóveis e as queixas surgidas de setores poderosos e cidadãos conservadores, zelosos por seus privilégios, não irão convencer o prefeito Haddad do absurdo de uma proposta que democratize a mobilidade paulistana.
A região dormitório e a renovação das promessasQualquer decisão tomada em grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte para tentar melhorar o transporte acabam por mexer fortemente com a vida de muitas pessoas. Nenhuma mudança será implantada com suavidade e ampla aceitação em cidades historicamente mal planejadas, pois quase sempre essas ações são remendos para solucionar questões e áreas pontuais e não aquelas que consigam atingir soluções mais amplas.
Exemplo disso é a Zona Leste de São Paulo, região que se adensou dramaticamente e hoje conta com mais de 4 milhões de habitantes (se fosse uma cidade estaria entre as maiores do Brasil). Uma região tipicamente dormitório, na qual uma fatia enorme desse enorme contingente populacional se desloca diariamente para as outras regiões da cidade, pois próximo de suas casas, simplesmente, não existem empregos. Por mais que se melhore o transporte, não será possível atender de maneira eficiente, segura e confortável o direito de ir e vir de todas essas pessoas.
Nossos prefeitos já entenderam, no papel é claro, que o segredo está em evitar que uma boa parte da população da Zona Leste precise sair da região. É preciso levar o emprego para perto de casa. Uma lei de incentivo para a instalação de empresas foi aprovada em 2004 (gestão Marta Suplicy), mas outras administrações passaram e até agora não surtiu muito efeito. O atual prefeito Fernando Haddad prometeu ampliar os benefícios com isenções fiscais de 20 anos para empresas que atuem em áreas como informática, telemarketing e telecentro. Será que agora vai?
Cidades mais sustentáveis e com mais qualidade de vidaOs prefeitos, das milhares de cidades brasileiras que assumiram novos mandatos no começo do ano, têm o grande desafio de reverter o quadro de deterioração das condições de mobilidade pública generalizada em todo o país.
Será preciso, talvez, uma boa interlocução com o Governo Federal que, ao tentar resolver os problemas econômicos de curto prazo incentivando a compra de automóveis, joga no colo dos prefeitos, verdadeiras bombas para serem administradas. Uma simples e nefasta transferência de problema.
As cidades não merecem ser desfiguradas para atender essa demanda insana. Definitivamente é preciso entender que o transporte individual nunca será solução, mas apenas o agravamento dos problemas de locomoção das pessoas.
Em primeiro lugar é preciso entender que a cidade pertence às pessoas e não aos carros. Trabalhar, portanto, pela melhoria e ampliação do transporte público, criação de ciclovias, recuperação de calçadas e adotar medidas que contribuam para a redução dos deslocamentos são algumas das medidas possíveis e prioritárias de qualquer gestão municipal seja ela de uma metrópole como de uma pequena cidade.
* Reinaldo Canto é jornalista especializado em Sustentabilidade e Consumo Consciente e pós-graduado em Inteligência Empresarial e Gestão do Conhecimento. Passou pelas principais emissoras de televisão e rádio do País. Foi diretor de comunicação do Greenpeace Brasil, coordenador de comunicação do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente e colaborador do Instituto Ethos. Atualmente é colaborador e parceiro da Envolverde, professor em Gestão Ambiental na FAPPES e palestrante e consultor na área ambiental.** Publicado originalmente no site Carta Capital.
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