Foto: Projeto GAP
O sol começa a projetar seus raios entre as nuvens do outono, a lua se esconde depois de ter presidido toda a noite, iluminando a escuridão que permite aos chimpanzés se movimentar sem muitas restrições. Um grito de Peter ao acordar desata uma resposta de outros recintos. Cada um tem seu DNA próprio e com o tempo é possível identificar o som emitido por cada chimpanzé, todos têm sua marca característica.
Dolores (Dora para os íntimos), em seus aproximados 20 anos de idade, sai de dentro da coberta que a envolve no chão do segundo andar de sua casa e sobe no cesto. Sua mente cheia de fantasmas e terríveis recordações comanda seus movimentos. Sua figura faz contra-luz entre o sol que nasce e a lua que se esconde. Seus movimentos, devagar e quase rítmico, prenunciam um dia a mais numa vida normal que lhe foi roubada.
Foto: Projeto GAP
Dolores teve duas etapas em sua vida. Na primeira, ainda adolescente, quando morava no Circo di Napoli e foi confiscada legalmente por uma ação da ONG AILA – Aliança Internacional do Animal, que a nos entregou junto com seu amigo Nino e dois ursos. As carretas do Circo invadiram o Santuário, que ainda era incipiente e talvez não estava preparado para enfrentar aquela luta contra o poder econômico da exploração animal.
Foto: Projeto GAP
Na primeira manhã entrei no recinto dela e ela me deixou sua primeira recordação: uma mordida na mão, sem consequências. Dolores começava a curtir sua liberdade num recinto só para ela, sem jaula que a aprisionasse. Uma semana durou aquela quimera. A luta estava começando, não sabíamos que era um “vale tudo”. Uma liminar judicial, de duvidosa origem, ordenava que ela voltasse ao Circo. Choramos quando voltou para sua prisão de ferro, numa carreta oxidada com Nino e os ursos de companhia.
Foto: Projeto GAP
Porém, nem a ONG nem nós desistimos. O Circo se afastou de nós, mas sempre sabíamos onde estava e novas medidas judiciais eram acionadas. Quando estavam na iminência de perdê-la de novo, acharam um cúmplice: o Zoológico de Beto Carrero, em Santa Catarina, que a escondeu por quase dois anos a fio, numa ilha diminuta, sozinha e onde a encontramos. Dolores estava doente, magra, era difícil ficar saudável naquele clima hostil, frio e úmido, mas sua mente sadia tinha partido e os fantasmas a invadiram para sempre, onde os homens eram monstros que a perseguiam por todo lado.
Foto: Projeto GAP
Já no Santuário, a colocamos com o grupo de adolescentes comandados por Guga e Noel, e ela foi se adaptando, apesar das crises inesperadas, quando os fantasmas do passado voltavam com suas recordações. Nem sua irmã menor, Samantha, a entendia. Sua mãe, Ditty, a pouca distância do seu recinto, tampouco podia ajudá-la, pois a tinham arrebatado de seus braços a poucas horas do nascimento, como era a prática nefasta naquela época.
Naquela manhã, Dolores começava a se movimentar ritmicamente e bater palmas no cesto que ela curte a 15 metros de altura. A 100 metros de distância, suas três sobrinhas, filhas de sua irmã Samantha, essas de mente arejada, já que não sabem o que é o sofrimento da escravidão, se penduram no cesto, fazendo brincadeiras, enquanto a luz do sol recorta suas figuras e a lua que se esconde marca todos seus contornos.
Foto: Projeto GAP
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