Parque solar gigante em Nevada, nos EUAGrandes saltos tecnológicos estão derrubando drasticamente custos da geração eólica e solar. Mas mega-corporações resistem às fontes limpas e decentralizadas A renovação do Protocolo de Quioto não pode ser o objetivo dos países em desenvolvimento nas duas próximas conferências do clima, a que acontece em dezembro deste ano em Lima e a de 2015, em Paris, onde se espera um novo acordo global. A afirmação é chocante, uma vez que Quioto apoia-se em dois princípios aparentemente incontestáveis, sob o ângulo da justiça ambiental. O primeiro é que embora as responsabilidades pela redução nas emissões de gases de efeito estufa sejam comuns, elas devem ser diferenciadas: quem mais emite hoje e mais emitiu no passado deve obter as menores possibilidades de continuar lançando na atmosfera os gases que respondem pelo aquecimento global. Se há lugar remanescente para emissões este deve ser preenchido pelos países cuja ocupação do espaço carbono foi, até aqui, relativamente baixa. Disso decorre o segundo princípio que distingue países que historicamente mais emitiram (os do Anexo I, no jargão da diplomacia do clima) e os outros (não Anexo I). Os países do Anexo I deveriam, pelas regras de Quioto, ter responsabilidades legalmente obrigatórias de reduzir as emissões, enquanto que para os demais os compromissos seriam bem mais tênues.
Até recentemente, estes princípios e a diferenciação deles decorrente poderiam ser defendidos sobre a base da constatação de que as formas predatórias de acesso à energia eram as mais baratas: carvão, petróleo, gás e hidrelétricas construídas em situações que comprometem os serviços ecossistêmicos correspondiam à maneira mais acessível de garantir o direito à energia elétrica a populações pobres. E é sobre a base deste argumento que se intensifica a pressão sobre as áreas de reserva na Amazônia, bem como para novos empreendimentos em petróleo, gás e carvão, no mundo todo e em particular na América Latina.
O que fica cada vez mais evidente, a partir do início da atual década é que este argumento vai deixando de ser verdadeiro. O avanço recente nas energias renováveis modernas (solar, eólica, biomassa e geotérmica) está superando as mais otimistas expectativas. E parte decisiva deste avanço ocorre acoplada à própria revolução digital, dando lugar a um processo inédito e altamente promissor de descentralização na maneira como, desde o início do século XX, a energia foi gerida.
Mas como é possível depositar tanta esperança em fontes que até aqui são consideradas caras, intermitentes e respondem por não mais que 3% da matriz energética global? Não será mais prudente garantir energia por meios convencionais (fósseis e grandes hidrelétricas) para só então poder dar-se ao luxo de incorporar, aos poucos, solar, eólica e biomassa?
O começo da resposta está na noção matemática de crescimento exponencial, como mostra um dos mais importantes inventores norte-americanos, Ray Kurzweil. Nos últimos vinte anos, o total da oferta de energia solar no mundo está dobrando a cada dois anos. Se dobrar mais oito vezes ao longo dos próximos 16 anos isso significa que 100% da oferta de energia do Planeta poderá ser solar. David Crane e Robert Kennedy Jr. mostram que os preços dos painéis solares caíram 80% entre 2008 e 2012. Como resultado disso, o preço do quilowatt gerado por painéis solares que era de cinco dólares em 2008, deve cair a US$ 0,50 em 2020. Já são vinte os Estados norte-americanos em que a energia solar compete com vantagem com fontes convencionais. Entre 2009 e 2013 a produção de energia elétrica por painéis solares nos EUA aumentou nada menos que 63,2% ao ano. A quantidade de energia gerada por painéis fotovoltaicos nos EUA em 2013 foi nada menos que quinze vezes maior que a gerada em 2008. Esta mesma tendência pode ser observada com a energia eólica, a fonte de geração de eletricidade que mais cresce no mundo. As turbinas dos geradores a vento são hoje mil vezes mais eficientes que em 1990. Em 2013 a oferta de energia eólica aumentou 33% relativamente ao ano anterior e vem dobrando, desde 1998, a cada dois anos. O resultado é que mesmo num país tão rico em carvão como a África do Sul a energia gerada por este mineral é mais cara que a eólica.
O avanço das energias renováveis já ameaça o próprio funcionamento da rede centralizada, uma vez que parte crescente da oferta é realizada a partir da auto produção dos domicílios e dos estabelecimentos comerciais. A unidade entre energias renováveis e revolução digital vai quebrar a associação, que marca de forma trágica a história do Século XX, entre energia e poder. Como bem mostra um relatório recente do Rocky Mountain Institute, “grid defection” (abandono da rede) é um território que não fazia parte dos cenários das empresas convencionais de energia. A organização financeira global UBS prevê que ainda nesta década, as contas de energia elétrica na Itália, na Alemanha e na Espanha cairão de 20 a 30%, como resultado do aumento da autoprodução. As empresas convencionais de energia na Europa devem perder 50% de seus lucros antes de 2020. E a chegada de baterias capazes de acumular energia vão compensar os momentos de ausência de vento ou a falta de insolação.
Neste contexto, o mais importante para os países em desenvolvimento não é garantir e ampliar seus direitos de emitir gases de efeito estufa. O princípio de justiça ambiental, contido no Protocolo de Kyoto, tem que se converter numa ampla cooperação global para universalizar o acesso às energias renováveis e descentralizadas.
Para isso há dois desafios centrais. O primeiro consiste em generalizar o avanço da revolução digital e as conquistas tecnológicas que marcam o vertiginoso declínio nos preços das renováveis modernas. Da mesma forma que os celulares se difundiram em países que não dispunham de rede telefônica convencional universalizada, o mesmo pode ocorrer agora com a energia renovável e descentralizada. O que supõe um desafio ainda mais difícil: enfrentar os interesses que tentam mostrar o atraso representando pelos fósseis e pelas hidroelétricas predatórias como único caminho para a energia barata.
* Ricardo Abramovay é professor Titular do Departamento de Economia da FEA/USP.** Publicado originalmente no site Outras Palavras.
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